Kemet, Reino Origem?

Compartilho aqui uma experiência recente, ocorrida no dia a dia, e que me possibilitou ressignificar uma série de indagações que desde pequeno eu trazia comigo. Experiência que envolve herança familiar, identificação étnica e unidade.

Há alguns meses, em uma rede social, um amigo compartilhou conteúdos sobre Kemet, o antigo reino africano que é hoje entendido como o Antigo Egito. Mas, diferentemente do que se conhece, Kemet teria sido um reino bem mais importante do que aquilo que entendemos por Egito. Até a partilha daquele conteúdo, eu nunca ouvira falar de Kemet, então procurei saber a respeito. E para a minha surpresa, conheci diversas referências científicas sobre o assunto, especialmemte o senegalês Cheikh Diop (1923-1986) e o congolês Théophile Obenga. Segundo esses e outros autores, Kemet talvez seja o verdadeiro berço da cultura ocidental, tendo existido por cerca de 4 mil anos, com forte presença no continente africano e regiões vizinhas.

A primeira grande contribuição de Diop e Obenga ocorreu em 1970, em um Simpósio de Egiptologia no Cairo, onde apresentaram um trabalho sobre as “Evidências da origem negra africana dos egípcios e a relação entre Egito e aquele continente”. À época, esses cientistas teriam utilizado técnicas laboratoriais avançadas para medir níveis de melanina em múmias egípcias, chegando à conclusão de que o Egito – Kemet – teria sido um reino não de pele clara, como se costuma acreditar, mas de pele escura. Um apontamento étnicorracial polêmica, por bater de frente com o eurocentrismo que domina há séculos as concepções vigentes sobre as origens da cultura ocidental, comumente atribuída à Grécia Antiga.

Complementam essa polêmica suspeitas encontradas em outros autores de que os próprios gregos, conhecidos por sua sabedoria, teriam adquirido seus conhecimentos a partir de Kemet. O antigo Reino teria alcançado estágios avançados na tecnologia e no conhecimento, tendo sido responsável, por exemplo, pelo surgimento das primeiras universidades na história e pela construção de outros importantes espaços ao longo do seu território, como bibliotecas e templos, a exemplo das Pirâmides do Egito. E o que é principal, o conhecimento em Kemet não estaria separado do autoconhecimento, de modo que também se supõe ter havido ali um grande desenvolvimento no saber a respeito do homem, da vida e do universo.

O grande divisor de águas na imponência de Kemet teria sido um gradual declínio ocorrido nas proximidades da Era Cristã, a partir da invasão de diferentes povos. Os Macedônios, em especial, e principalmente o seu imperador Alexandre, O Grande, teriam conquistado amplos territórios de Kemet. E além disso, também teriam empreendido uma larga destruição de bibliotecas, templos e outras referências do poder e do saber de Kemet. Essa narrativa se agrava por suspeitas de que Aristóteles, hoje conhecido como um dos grandes pensadores gregos, teria sido preceptor de Alexandre. Uma possibilidade que dá um tom ainda mais crucial a todo o enredo, permitindo-nos refletir de maneira abruptamente crítica sobre o pensamento ocidental.

Quando adquiri uma maior atenção sobre o conhecimento filosófico e científico, principalmente ao final da formação acadêmica, voltei-me a ler alguns dos pensadores gregos. Eu esperava encontrar neles o princípio do pensamento ocidental, mas tive aí duas grandes surpresas. Primeiro, encontrei em Platão muito mais do que o resumo que se atribui aos diálogos de Sócrates a partir de sua máxima “Só sei que nada sei!”. Sócrates falou como ninguém sobre a condição humana, as virtudes, a vida maior, e outros temas, mas sempre reconhecendo a limitação do homem em criar conceitos precisos para tais entendimentos. Em seus diálogos com os sofistas, pretensos sábios daquela época, Sócrates desconstruía os argumentos de todos, mas sem apresentar argumentos próprios que os substituíssem. Ele defendia o amor à sabedoria em si mesma, que não caberia em definições verbais, mas seria relativa à própria vida.

Minha segunda surpresa foi encontrar, em Aristóteles, o extremo oposto de Platão/Sócrates. Aristóteles buscou categorizar a vida, definir os seus elementos, falando a respeito “do que é e do que não é”, e assim construíndo literalmente um modo de pensar. Categorias, inclusive, é o nome de uma das obras mais conhecidas de Aristóteles.

Fiquei atônito ao observar a diferença entre Sócrates e Aristóteles, e a partir daí passei a questionar o saber ocidental como um todo. Identifiquei-me inteiramente com Sócrates. Vi nele a figura de um sábio, cujo saber não cabe em palavras, é demonstrado em vida, enquanto que em Aristóteles, a figura de alguém que ainda buscava pelo saber. A propósito, conta a história que Sócrates foi assassinado, condenado por poderosos a ingerir veneno, acusado de corromper os jovens com seu entendimento. Mas Sócrates morreu satisfeito, tentando convencer aos seus de que não deveriam lamentar a sua morte, pois ele acreditava que seguiria para a vida maior, a vida das ideias, a vida da alma. E não que eu me diga capacitado a avaliar a filosofia grega, mas suspeitei que havia em Aristóteles o começo de um aprisionamento do pensamento ocidental a partir de suas conceituações, embora sem negar, claro, que há muito conteúdo lógico em seus escritos.

Em Sócrates, o Conhecimento parece estar ainda ligado ao Autoconhecimento, assim como se supõe em Kemet. “Conhece-te a ti mesmo“, inclusive, é uma das máximas do sábio. Em Aristóteles, ao contrário, todo o conhecimento parece forjado por um esforço mental de definição e classificação, sem qualquer traço de autoconhecimento, talvez assim afastando os homens de reflexões maiores sobre a vida e sobre si mesmo. Algo que, a propósito, talvez tenha faltado em suas instruções a Alexandre, a tirar pela destruição que este teria levado aos territórios que conquistou.

Se legítima essa compreensão da história, não parece à toa que o sábio, Sócrates, tenha sido assassinado, e o “pretenso-sábio”, Aristóteles, figure hoje como pai do pensamento. Após a queda do mundo antigo, a filosofia aristotélica teve grande importância no pensamento medieval, e ainda hoje parece influenciar o pensamento ocidental em seu excesso de categorizações, análises e cientificidade, mas em escasses de autorreflexão e autoconhecimento.

A destruição da presença de Kemet na historiografia teria aberto caminho para as narrativas eurocentradas que governam a cultura ocidental até hoje. Nesse sentido, tornou-se valioso para os europeus a consideração do Egito como uma civilização de pele clara, e não escura. Entretando, se considera-se hoje as novas interpretações históricas disponíveis, a retomada de Kemet na história é capaz de gerar reflexões não apenas étnico-raciais, mas também congregadoras entre conhecimento e autoconhecimento, e contributivas para maiores identificações com heranças familiares e culturais africanas, o que ilustro a seguir com relatos de minha experiência. De modo determimante, a simples reconsideração de Kemet lançou luz sobre questionamentos que sempre tive comigo.

Eu sou neto de dois avôs pretos e duas avós brancas. Por isso, apesar de eu ter nascido com pele clara, já na adolescência eu me questionava sobre minhas heranças familiares africanas. Devido à cor da minha pele, nunca requisitei para mim qualquer autodeterminação africana, e também por entender a Identificação Étnico-Racial como uma expressão político-social. No entanto, sempre me questionava: se existe herança genética africana em minha família, porque deveria ser a cor da pele a validar socialmente essa herança? A suspeita sempre foi a de que a necessidade política de autodeterminação étnico-racial em função das assimetrias sociais que predominam no mundo, e que assolam predominantemente a população preta, se sobrepões à herança étnica enquanto herança genética, familiar e de ancestralidade.

A tomada de consciência de Kemet como possível berço da cultura ocidental me permitiu lidar melhor com esses questionamentos, considerando a unificação do debate hereditário não em torno da questão étnico-racial, mas de questões culturais e filosóficas. Embora eu tenha a pele branca, sinto-me agora mais contemplado e legitimado em relação à minha herança africana, reconhendo, claro, que também tenho heranças européias (sou um mestiço, enfim). Compreendendo melhor Kemet, a África deixa de ser apenas um estereótipo de primitivismo e pele escura, e passa a ser, para além disso, uma referência no conhecimento e no autoconhecimento ocidental.

Kemet seria talvez o Reino Origem, o precedente não só da cor Preta, mas do pensamento e da cultura do ocidente. De posse dessa consideração, sinto-me mais seguro em cultivar, por exemplo, o interesse que sempre tive em expressões religiosas afrodescentes, principalmente sua música e sua dança. O conhecimeento de Kemet me fornece mais legitimidade a explorar e reinvidincar minhas heranças étnicas, genéticas, familiares e ancestrais, a despeito de qualquer questão de cor de pele. E isso é sugestivo de que, por meio do conhecimento e do autoconhecimento é que nos aproximaremos da unidade, mesmo em meio à diversidade que envolve diferenças étnicas, sociais e políticas.

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